Memória e apagamento no imaginário dos telejornais
Marcelle Lara Pimentel.
Ela investiga a assunção interina de Aldo Rebelo à Presidência da República, fato inusitado no Brasil, para examinar o papel dos telejornais no tratamento dessa notícia.
Este trabalho apresenta resultados parciais da tese de doutoramento da autora. Ela é Doutora em Linguística pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas – Unicamp. Mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep. Bacharel em Comunicação Social – Habilitação Jornalismo pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Docente do curso de graduação em Comunicação Social – Jornalismo e Publicidade e Propaganda e do curso de pós-graduação em Comunicação, Publicidade e Negócios do Centro Universitário de Maringá – Cesumar. Membro do Grupo de Pesquisa Gepomi (Grupo de Estudos Políticos e Midiáticos), da Universidade Estadual de Maringá – UEM, e do Grupo de Pesquisa Discurso, ciência e historicidade, da Universidade do Vale do Sapucaí – Univás. E-mail: renatamlara@yahoo.com.br.
O resumo da tese é que “As relações simbólicas entre memória e apagamento constituem o imaginário dos telejornais. Orientado pela perspectiva materialista do discurso, este trabalho analisa a conjunção verbalvisual como materialidade específica dos telejornais, buscando observar o trabalho da memória (interdiscurso) e do apagamento/silenciamento de sentidos em meio à produção do efeito notícia na textualização telejornalística envolvendo o governo Lula, Aldo Rebelo e o Partido Comunista do Brasil. Para tanto, adota como referencial teórico-metodológico a Análise de Discurso, de linha francesa,fundada pelo filósofo Michel Pêcheux e desenvolvida no Brasil a partir dos estudos da linguista Eni Orlandi.
Na apresentação do telejornal, a notícia se esboça e se expõe, se textualiza na circulação, imbricada na imagem do apresentador. Tal imagem é recorrente na noticiabilidade. Por mais que se inscrevam outras imagens, cenários de realidade, marcando, significando e afirmando eventos na continuidade da voz do apresentador, é na retomada à sua imagem que o ritual de apresentação acontece. A imagem-visual do apresentador organiza, para o público, as partes do telejornal no conjunto-telejornal, de modo a configurar a imagem do telejornal.
Reiteradamente, na reportagem, a voz (off) do repórter é que funciona, de forma marcada, como organizadora do efeito notícia. O encontro entre a sua voz e imagens cenários de realidade expõe, na recorrência do off, uma realidade se dizendo. As imagens “falam por si” (como efeito) na medida em que são ditas pela voz do repórter. É ela, por meio dela, que a dispersão, constitutiva de toda linguagem – porém, mais suscetível na imagem – é contida, e a coerência exigida do discurso jornalístico, e por ele, se impõe.
Dizendo de outra forma, enquanto na apresentação do ritual telejornalístico a imagem-visual da apresentadora, na relação com a oralidade, sustenta o efeito notícia no reconhecimento público da legitimidade dessa função – fruto de uma identificação visual – na reportagem tal efeito, também produzido da posição-jornalista, afeta o telespectador, ritualisticamente, pela imagem-repórter retornada na voz desse sujeito institucionalizado. Em conjunção a outras imagens, inscreve e sustenta “o verdadeiro do telejornalismo”, resultante de um efeito de correspondência entre notícia e realidade, como se a realidade noticiada existisse independe do sujeito de linguagem.
Ela parte das reportagens1 do Jornal Nacional e do Jornal da Record, que noticiam, no dia 13 de novembro de 2006, a assunção interina da Presidência da República por Aldo Rebelo, então presidente da Câmara dos Deputados e membro do Partido Comunista do Brasil (PC do B). Rebelo assumiu a Presidência da República, por um dia, devido à ausência do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no país, em viagem à Venezuela, e da indisponibilidade do vice-presidente, José Alencar, em tratamento médico nos Estados Unidos. No caso dessas impossibilidades descritas, a Constituição brasileira prevê que o presidente da Câmara dos Deputados é o segundo na linha de sucessão. A assunção figura, portanto, nesses telejornais, por essa mera casualidade, ao se fazer advir, constantemente, que o primeiro comunista a alcançar a Presidência de uma democracia ocidental, sem revolução ou golpe de Estado, só estaria assumindo devido à ausência do presidente e do vice-presidente da República, interditando qualquer possibilidade de, em algum momento na história, o PC do B chegar à Presidência por eleições diretas.
No Jornal Nacional, o noticiário envolvendo Rebelo foi primeiramente enunciado em passagem de bloco. No Jornal da Record foi explorado como notícia já na escalada (manchetes de abertura). Em ambos os telejornais, a divulgação em torno de Rebelo se inscreve num trajeto temático que focaliza o governo Lula, política e economicamente.
O motivo gerador da possibilidade de se ter notícia, nesse caso, advém desse outro acontecimento noticiado na escalada pelo JN e JR, esboçado em torno da viagem de Lula à Venezuela, para participar de um evento público, juntamente com o presidente venezuelano Hugo Chávez, a poucos dias das eleições presidenciais naquele país. Chávez concorreria ao seu terceiro mandato consecutivo. Lula, há menos de quinze dias, havia sido reeleito presidente, no Brasil.
Na reportagem do Jornal Nacional, a causalidade quanto a Rebelo assumir a Presidência se explicita na passagem do repórter (Figura 1). A eficácia do efeito notícia advém do encontro entre a posição-repórter – cuja autoridade para dizer sustenta a ilusão de um dizer autônomo –, e a expressividade gestual, além da eloquência na significação do texto verbalizado.
Os caracteres, na condição de materialidade verbal escrita, se inscrevem na imagem como assinatura do dizer oralizado e da própria imagem representativa do sujeito repórter. Estabelece a relação necessária entre fala, imagem-visual e imagem-institucional3, pondo em funcionamento, na função-repórter, a posição-jornalista, que sustenta o dizer institucional como legítimo. Ao mesmo tempo, para que tal legitimidade funcione, apaga-se a autoria, tanto coletiva quanto individual, pela institucionalização do sujeito. Não é o sujeito Tonico Ferreira quem assina, mas o repórter Tonico Ferreira, identificado pelo vínculo institucional ao JN, localizado e inscrito geograficamente numa cidade, e num lugar delimitado nessa cidade. Esse encontro entre verbal e imagem, em relações institucionais, torna autônomo o dizer pelo próprio vínculo institucional.
A emissora dá nome (representatividade-autoridade) ao repórter, e ele dá nome (representatividade-autoridade) à emissora, nomeando-se e institucionalizando(se). A nomeação faz parte desse processo de reconhecimento da autoridade do dizer, para dizer. A postura gestual expressiva do repórter, seja como componente da materialidade da imagem ou elemento constitutivo da oralidade quanto à entonação da voz, no destaque a certas palavras, participa da produção dos sentidos da notícia. As relações conjuntivas do lugar enunciativo de repórter, em imbricação material com a gestualidade expressiva, e a escrito-imagem na sustentação da representatividade institucional(izante), produzem a eficácia do efeito verdade, institucionalmente construído, no silenciamento da memória constitutiva do Partido Comunista do Brasil, no Brasil, e na filiação a uma memória midiaticamente estereotipada, quanto a tal partido.
Na interpretação jornalística sustentada no encadeamento das relações conjuntivas advém a negativização de Aldo Rebelo na negação do Partido Comunista do Brasil. A atribuição “sabe que”, imputando a Rebelo um “auto-conhecimento”, sustenta o efeito de reconhecimento da “casualidade” como evidência, e, portanto, posta como inquestionável. A adversativa “mas” destitui do PC do B a força política, apesar do tempo de sua existência, reduzindo tradição a temporalidade. O “Nem” expõe limitações do partido, apontando uma insignificância pelo próprio gestual do repórter. O “E” intensifica tal insignificância, de modo que, “Por isso”, justifique a discrição de Rebelo como forma de auto-reconhecimento dessas limitações. Discrição que funciona como barreiras intransponíveis, no discurso do repórter.
A negação e negativização de Rebelo e do PC do B se reitera na contínua reafirmação dessa “casualidade”, sustentada no apagamento, no verbal e na imagem, de suas histórias. Também, na inscrição, no sujeitopopular, do desconhecimento da trajetória política de Rebelo e de seu partido, como se tal desconhecimento justificasse uma insignificância dele e do PC do B.
“Um dia inesquecível para Aldo Rebelo” se reduz, na interpretação do repórter, ao usufruto de regalias presidenciais, como explicitado por “comitiva oficial” e “viagem em jato da Presidência”, além de posar para fotografias. Silenciam-se outros sentidos nesse e para esse dia quanto à trajetória política de Aldo Rebelo e à história do PC do B. Além disso, a apresentação de Rebelo como “alagoano de 50 anos” figura como espécie de registro civil de sua existência física, invisibilizada no cenário popular. Por mais que, nessa reportagem do Jornal Nacional, se fechem os sentidos no apagamento da trajetória de Rebelo, retorna na imagem-visual de Rebelo, conjugada à materialização verbal de “alagoano”, sua origem nordestina, tal como o pernambucano Lula, somada à sua inscrição no Partido Comunista do Brasil. Origem que reinscreve na história a história de Rebelo, cuja imagem, visual ou imaginária, fora invisibilizada também na e pela ação e omissão da mídia.
Ao mesmo tempo, a popularidade de Lula ressurge no contexto popular, por expressão do próprio popular, seja na espontaneidade do gestual ou no tom de voz da exclamação interrogativa de surpresa, mesmo que, nesse cenário de noticiabilidade, tal imagem de popularidade seja possível apenas no apagamento da imagem de Aldo Rebelo. Lula, antes mesmo de ser presidente, já era conhecido como líder metalúrgico, filiado ao partido que fundou, e que ganhou visibilidade no cenário nacional; ao contrário do que se busca significar quanto a Rebelo e ao PC do B.
O estabelecimento de um vínculo do PT (Partido dos Trabalhadores) e de Lula ao PC do B se dá no encontro entre a imagem e o verbal. O comunismo é silenciado (se silencia) enquanto tal, mas os sentidos que representa na/pela direita mantém-se em funcionamento, vinculados à esquerda, como oposição. Na imagem em preto e branco, na qual Rebelo aparece entre Lula e Luiza Erundina, a fixação de uma memória oficial sobre o comunismo no Brasil se põe em funcionamento, associando a esquerda petista a tal comunismo. O verbal se valida nesse encontro com a imagem quando Rebelo é identificado como “presidente da Câmara” e “membro do Partido Comunista do Brasil, o PC do B”. É, assim que o repórter responde inicial e finalmente à interrogação do sujeito popular: “Aldo Rebelo? Mas quem é esse Aldo Rebelo?”
A longa trajetória política de luta, movida por ideais, encarnada na imagem, seja no preto e branco retomando um passado longínquo ainda hoje ressoante, exibido em seus traços de realidade, seja nos militantes de esquerda, nas figuras de Lula, Rebelo e Erundina, ou no gestual, pelo braço direito erguido no sentido avante (Figuras 6 e 7), se reduzem, na interpretação jornalística, aos lugares sociais hoje ocupados por Rebelo no PC do B e na Presidência da Câmara. A menção aos 16 anos no cargo de deputado não justifica, simplesmente, a Presidência da Câmara. Sustenta a invisibilidade pública marcada no desconhecimento popular, já que Rebelo está há anos na política, mas seu nome “sequer é conhecido pelo povo”, conforme textualização jornalística. O efeito de insignificância política de Rebelo e de seu partido, apoiando-se no desconhecimento do popular, sustenta a própria invisibilidade de Rebelo produzida pelo gesto de interpretação do jornalista.
Na imagem da sonora de Aldo Rebelo, ao final da reportagem, ele é identificado, na legenda, por: “DEP. ALDO REBELO PC do B–SP”. Logo abaixo, “pres. em exercício”. Igualmente em caixa alta, e sem qualquer pontuação separando-os, o nome Aldo Rebelo é emendado à sigla PC do B. Tal continuidade gera uma re-nomeação de Aldo Rebelo, passando a significá-lo pelo “novo sobrenome”, ou seja, a própria sigla do partido que representa. Entre o nome Aldo Rebelo, significado como ausente do imaginário popular, e o nome PC do B, em funcionamento negativizado nesse imaginário, de modo a mantê-lo silenciado, o partido, em cuja interpretação jornalística retoma uma memória oficial, é quem passa a dar visibilidade a Rebelo, apagando-se as trajetórias políticas nos quais se constituem. Ressalta-se que a inserção de caracteres não se dá na função-repórter, sendo feita, geralmente, por um técnico, que põe no ar a legenda no momento mesmo da circulação do ritual.
Repete-se na reportagem do Jornal Nacional o esvaziamento de sentidos produzido na textualização da passagem de bloco, quando Rebelo é visibilizado como “o primeirão”. No texto verbal da passagem do JN, “E um presidente comunista / entra para a história da nossa República”, presidente comunista, conjugado à imagem, do qual a escrita “o primeirão” se faz constitutiva, só pode significar, na interpretação jornalística, o ineditismo de um comunista estar na Presidência da República, mas, ao mesmo tempo, já justificado como mera casualidade, tal como se apresenta, antecipadamente, na cabeça da matéria (espécie de abertura/chamada da matéria, narrada pelo apresentador).
Na reportagem de Christina Lemos, do Jornal da Record, dois eixos centrais estruturam a notícia: a constante demarcação opondo esquerda e direita, e a contínua reafirmação da excepcionalidade e da fugacidade de um comunista na Presidência da República. Mesmo de forma menos explícita ou menos banalizada do que no JN, a conjunção material ainda produz um apagamento de outros sentidos para o comunismo que não o da retomada de uma memória oficial sobre ele.
Na escalada do JR, a apresentadora Adriana Araújo verbaliza: “Aqui no Brasil, o dia do primeiro comunista a ocupar a Presidência da República”. Não se trata do dia em que um comunista assumiu a Presidência da República, em sua historicidade significante, mas de um único dia, portanto, como uma marcação de efemeridade, do primeiro comunista a ocupar a Presidência da República. Quanto a ser inusitado um comunista assumir a Presidência, a cabeça da matéria, por si só, já interdita outros sentidos possíveis que não o de mera casualidade resultante do inesperado, e da regulamentação brasileira em sua constituição democrática. Os trechos da sonora (entrevista) de Rebelo, veiculados no JR e no JN, buscam validar o que seria uma “brecha” na democracia. Isso considerando que, embora em um país democrático todos os partidos tenham direito a concorrer à Presidência da República, a fixação de uma memória em torno de comunismo e a sua naturalização, também por ação da mídia, no imaginário social, interdita, inclusive, pensar nessa possibilidade a não ser pelo que foi exposto, ainda de forma mais enfática no JN, como uma “casualidade”.
Sonora de Aldo Rebelo (JR): “Assumir a Presidência da República, na minha condição de integrante do Partido Comunista, também é uma demonstração do amadurecimento da nossa democracia.” Sonora de Aldo Rebelo (JN): “Essa fugaz e breve passagem é um testemunho de que a democracia no país é possível; que ela não ameaça ninguém, e que, pelo contrário, nós podemos fazer um país cada vez melhor se ele for cada vez mais democrático.”
No Jornal Nacional, a “ausência de ameaça” vem assegurada na negativização do PC do B, na afirmação de sua baixa representatividade, e também por destacar uma invisibilidade de Rebelo no imaginário popular. No Jornal da Record, a afirmação da abertura democrática também sustenta a negação do comunismo nessa democracia, marcadamente separada entre direita e esquerda, pela casual e fugaz passagem de Rebelo. Contudo, há pontos de deriva nessas verbalizações, que apontam para outros sentidos, não só de como Rebelo (se) significa nesse momento, mas também como o comunismo (se) significa (n)a democracia brasileira, para além de uma mera casualidade. Como afirma Orlandi (2007, p.67), não há um total desaparecimento aquilo que foi censurado. “Ficam seus vestígios, de discursos em suspenso, in-significados e que demandam, na relação com o saber discursivo, com a memória do dizer, uma relação equívoca com as margens dos sentidos, suas fronteiras, seus des-limites”.
Vocês podem ver a íntegra em http://www.uel.br/revistas//uel/index.php/discursosfotograficos/article/viewFile/2931/2483
Parabéns, Renata!
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